Parte III
Voltando ao atual status da minha (pós-) vida, chegou uma das piores horas.
Não sei se vocês já tiveram, ou tem, aquela sensação de só olhar para alguém e pensar “eu te amo” enquanto a pessoa está comendo macarrão e com o rosto todo sujo de molho. Eu tive.
E ele chegou. Enquanto tios, tias, avós, avôs, conhecidos, gente que eu nunca vi na vida, cercavam meu caixão marrom-cor-de-depressão, ele ficou na porta do velório. Olhando de longe, com as mãos no bolso da jaqueta (pelo jeito estava frio, todo mundo estava com mil blusas e andando igual aquele fantasma gigante de marshmallow de Caça Fantasmas) e olhando para a direção de onde eu estaria.
Mesmo depois de morrer, mesmo não sentindo coisas, meu Eu Fantasma precisou chegar até ele, ficar perto. Não tive coragem de tentar encostar, porque se eu atravessar ou sentir ou bater em uma barreira invisível, vou querer morrer de novo. E isso deve dar trabalho.
Ele estava triste, mas não chorando. Conheço ele. Chorou muito quando recebeu a notícia, se trancou no banheiro do trabalho e chorou por… Com certeza muito tempo. E em casa ele chorou mais, até dormir, e até chorou um pouco quando acordou, pensando em como seria chegar aqui. Não me levem a mal, não estou dizendo que nossa, eu era tão maravilhosa que mereço as Cataratas do Niagara em água salgada… Eu só o conheço. Ele sofre sozinho, engole tudo, e no meio de todo mundo vira uma pedra onde todos podem se apoiar. Talvez ninguém use o apoio, mas ele tem um jeito que só se olhar para ele você sabe que pode se apoiar. É como uma poltrona muito confortável na loja de móveis que você não precisa sentar, mas que talvez, quem sabe, você sentará só porque ela é confortável.e vai te deixar um pouco mais feliz.
E essa foi a primeira vez que eu meio que me arrependi.
Meus pais chorando? Não. Meu irmão deprimido, mal conseguindo falar? Pfff, por favor. Minha avó dizendo que não aguenta mais perder pessoas amadas? Passeio no parque.
Mas ele, com as mãos na jaquetas, tentando me ver de longe, porque pisar na sala do velório em si seria absurdamente dolorido e tornaria tudo 100% real, doeu.
Doeu tanto que pensei em deitar em cima do meu corpo pra ver se meu Eu Fantasma conectaria de novo com meu Eu Morto, mas eu não conseguia me mexer, não conseguia sair de perto dele, funcionava como um imã, só que para namoradas mortas.
Eu queria pedir desculpa, queria abraçá-lo, queria tirar ele daquele lugar deprimente e levá-lo para comer pizza. Mas não podia. Mal podia sair de perto da porcaria do caixão, quem dirá ir para a pizzaria mais próxima com meu namorado vivo. Fora que a situação toda seria esquisita, ele chegando na pizzaria e pedindo mesa para dois e o atendente vendo só ele e todo desconforto de parecer esquizofrênico.
O quanto você aceitaria libertar seu sofrimento em detrimento do sofrimento alheio? Sofrimento dos seus pais, irmãos, tios, avós, namorad(o/a)?
A nossa existência, normalmente, se limita a nós. Mas, ao mesmo tempo, aos outros.
Qualquer pessoa que já pensou em se matar também considerou como seria a vida após a dela terminar. Como seus pais, filhos, marido/namorado, amigos, parentes reagiriam? Como seria cada postura em frente ao seu caixão? Pois bem, sempre pensei nisso, mas, apesar de imaginar como seria a sua reação, isso não foi alívio.
Talvez tenha sido mais dolorido por saber sua reação e ainda assim seguir em frente com meus planos. Meu egoísmo se cruza com a esperança de perdão e aceitação da tal dor. A dor de perder um amor da vida. A dor de ver uma pessoa desistir de tudo, inclusive de você. Quanto isso te dói?
Enfim, sim, eu estou meio arrependida.
Parte V
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