O clima é sempre muito pesado. O vento frio, que lá fora bate na nossa cara sem dó, aqui não entra. Aqui o ar é parado no tempo e, se você prestar atenção, pode ver o pó congelado no meio do ar.
No fundo, é possível ouvir um padre ou ministro ou pastor ou alguém que gosta de falar de deus. E falar alto: ASSIS SE FOI APÓS VIVER PLENAMENTE. E choro. Um choro alto, dolorido e que sai como uma torneira quebrada.
Já no primeiro plano: Sinto muito; meus pêsames; ela era uma ótima pessoa; foi tão cedo, era tão jovem; tinha a vida toda pela frente.
E o corpo. O meu corpo inerte, coberto por flores e um véu, dentro da caixa marrom, a mesma que alguns estão mais mais acostumados a ver em séries e filmes de vampiro. Outros encontram, encontraram ou encontrarão mais do que qualquer um gostaria.
Eu realmente pareço estar dormindo, totalmente alheia ao estardalhaço à minha volta. Tanto o choro próximo, quanto o em volta de Assis. Assis continua em seu caixão com o padre ou ministro ou pastor ou alguém que gosta de falar de deus, e falar alto, gritando quão plena foi sua vida.
Se o Assis foi metade do que o Cara Que Gosta de Falar de Deus Bem Alto diz que foi, queria ter sido amiga dele.
Será que fazemos amizade no além-vida?
Eu ainda não sei muito sobre esse assunto, afinal, eu acordei agora. Normalmente, pelo menos nos filmes, o espírito da pessoa aparece assim que o monitor cardíaco mostra 0 de atividades cardíacas, né? Quando aquela linha, que fica pra cima e pra baixo, fica reta. As séries médicas me ensinaram que chamam de flatline.
Bom, comigo não foi assim. Eu acordei aqui, com o pó parado no tempo, o choro, o Assis, minha família, mais choro, gritos e palavras de deus. Ou seja, eu tava perdida. Perdida tipo criança no mercado, na véspera de natal. Não é legal.
Enfim, comecei a divagar. Mas não me julguem, é o que me sobra já que não posso ir muito longe do meu corpo. Ainda não sei se isso é uma regra, e se for, descobrimos a origem dos mitos de fantasmas em cemitérios. E eu poderei conhecer o Assis, afinal, ele vai ser enterrado no mesmo cemitério que eu. Oba.
As flores, o caixão, até a roupa que eu estou usando, tudo é muito errado. Se você me conheceu bem, vai olhar e pensar que eu não aprovaria aquelas coisas. Na verdade, quando viva, eu tinha várias exigências sobre minha morte, mas como morri jovem ninguém lembrou de anotar.
Eis o ponto: eu não me importo. Essa cerimônia, esse choro, essas flores, o vestido, meu corpo exposto como um boneco de cera daquele museu inglês, essas coisas todas, não são pra mim.
O circo armado no velório municipal da cidade é para conforto de quem ficou.
Eu? Eu morri. Assumo que não acho totalmente divertido ver gente se debruçando no meu corpo e chorando (gente, sério, é um corpo. Sabe. Sei lá? Um defunto, parem de encostar, beijar, cheirar um DEFUNTO), mas o que se pode fazer? Acho que traz paz para quem faz isso e eu que não vou julgar ninguém por isso. Na verdade, eu estou julgando muito e achando bem esquisito, como achava em vida, então esqueçam essa parte onde pareci altruísta e legal. Morte dá direito de ser babaca gratuitamente?
De qualquer forma, o que eu poderia fazer? Ninguém me vê, ninguém me ouve, o que pode ser considerado bom.
Se a pessoa que está sendo velada começasse a falar, acho que metade do pessoal morreria do coração e a outra metade filmaria e tiraria selfies. Eu não quero selfies pós-vida, obrigada.
Lindo isso! Acho terrível será que teremos que permanecer ali perto do corpo vendo o povo velar? Quero não! Quero fugir o mais rápido possível para gozar a liberdade do espírito. obrigado.
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A história vai continuar e vamos descobrir isso 😉
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que bom!
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Gostei da sua escrita, Roberto! Invejo (de um jeito bacana) quem tem habilidade para fazer um humor fino. E vamos combinar que o tema não ajuda a arrancar sorrisos. ;o) Mas arrancou. Vou seguindo, ok? Abraços.
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Muito obrigada pela resposta e pelo elogio! Mas essa história “E morreu (eu, no caso)” é escrito pela Isadora 😉
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Desculpe, erro meu. Mas vou transferir o elogio, então, Isadora. Estamos todos juntos nessa. Beijo.
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Oi, Ana! Como vai? A “E morreu (no caso eu)” é escrita pela outra autora do Blog, a Isa! Fico feliz que esteja acompanhando, pois é uma baita história! Abraços!
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Puxa, Roberto, que furo! rsrs. Eu li todos os textos, comentei no último e não me dei conta de q havia mais de um escritor. Transferi aquele elogio pra ela. rs. Mas mantenho a boa impressão sobre sua escrita. Gostei de todos os textos. Escrevam! Vou seguí-los e adoro ler. Beijo.
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Acontece, Ana! Também gostei muito de sua escrita e irei acompanhar! Um beijo!
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Que humor bacana. Empresta um pouco.. ando longe de humor ultimamente. Gostei e curti.
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Obrigada! 😃 Tenho tendência a reagir desse modo em situações esquisitas (a história me veio em um velório de verdade)
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Poxa, Isa, fiquei imaginando e senti muito disso no velório de minha vó, dia 9 passado. Obrigada.
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Nossa muito bom o texto como si realmente tivesse vivendo isso…Parabéns Isa..Acabo de conhecer o blog por indicação de um amigo meu que inclusive sugeriu que seus textos estivessem na plataforma que eu trabalho. Espero sua visita lá em feedHi.com é ótimo para blogueiros e seus textos fazem parte de uma categoria que muita gente busca ler. bjus
http://www.feedhi.com
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Obrigada, Renata! Vou olhar a plataforma sim 🙂
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Um texto lindo Is a Dora. Uma reflexão interessante sobre a morte. Uma ideia diferente a sua; de pensar a morte como o momento em que deixamos de ter domínio sobre quem somos e nos tornamos memórias e selfies para os outros. Um pouco como a arte; depois que vc escreve algo, a interpretação dos outros acrescenta ou limita a sua ideia , mas é fato: ela deixa de ser sua e passa a ser dos outros
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Obrigada 🙂 A história continua, mas você pegou exatamente o clima da coisa
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VAleu
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Morte. Tenho pensado muito nisso ultimamente, mas espero que a recíproca não seja verdadeira… Não é minha, mas sim de Woody Allen. Sobre isso: https://veredasaude.com/2016/06/08/trilha-sonora-para-um-bom-velorio/
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Penso sim, mas não encaro a morte como algo tão trágico. É uma das poucas certezas da vida, então eu a aceito como ela é
🙂
Muito obrigada pelo comentário e pela indicação!
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Pingback: E morreu (eu, no caso) II | Me desculpem, não foi de propósito!
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Roberto, grande escritor. Afinal a Ana é uma das suas personalidades ou muito me engano?
A Ana é real? Tô confuso. Seguirei lendo, mesmo que de trás pra frente já que peguei o bonde andando.
Saudações do escrevinhador aqui das Minas Gerais.
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Olá, Jairo. Quem escreve a história E morreu não é o Roberto, sou eu, a Isa Dora.
A personagem ainda não tem nome, não se chama Ana, mas sim, eu escrevo de acordo com o que vivo 🙂
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UAU! Fica mais interessante ainda, embora eu siga confuso. rsrsrs
Me explique aí: Roberto e Isa postam no mesmo Blog, é isso?
Abraço!
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Isso mesmo. Meu conto é o E Morreu
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